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quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Alcides

Dez minutos. Falaram dele durante dez minutos. Depois a sua lembrança foi caindo no esquecimento. Poucos dos frequentadores do café onde fora afixada a notícia do seu falecimento se dirigiram á igreja onde familiares e amigos se solidarizavam com a esposa e filhos do defunto.
Meses antes, ainda Alcides era vivo, tinham-no visto no café onde costumava passar as tardes entretendo-se com umas partidinhas de "snooker".
- Ei homem você está amarelo, o que é que tem?!
Alcides nunca mais dera as caras por ali. Mais do que os comentários sobre a sua aparência, incomodava-o o facto de não saber o que tinha.
Emagrecera. Estava anémico. Tinha corrido vários especialistas, pagara fortunas em consultas. Para seu desespero os médicos mandavam-no fazer exames e mais exames.
- Que diabo! - lamentava-se à mulher exasperado - Esses cabrões só me mandam fazer testes, então não descobrem o que se passa comigo?
A mulher não sabia o que dizer.
- Ó filho tens de ter calma, estas coisas não se resolvem do dia para a noite.
- O que eu tenho é muito grave e tu nem te dás conta, mulher...
No casamento da neta, Alcides tivera uma crise. Tremendo de frio não conseguira engolir o almoço.
- Vamos para casa, não me sinto bem...
A partir desse dia não voltou a ser o mesmo. Feitos mais alguns exames entrou em lista de espera para ser operado.
- Quero ser operado na capital, não quero nada com esses médicos de cá - proclamara Alcides, sempre desconfiado e descrente da eficácia da medicina.
Na capital as suas expectativas foram cruelmente goradas.
- O senhor não pode ser operado, tem anemia...
Mais testes, mais exames. Finalmente regressaram a casa.
Passado alguns dias o médico comunicara por telefone: 
- Têm de cá voltar para um último exame.
Abalaram de novo para a capital.
- O seu marido tem de ser operado de urgência minha senhora - disseram a Felismina - Tem um tumor no cólon...
Felismina não consegui pronunciar palavra. Aquilo soava-lhe mal. Atordoada balbuciou:
- Mas pensávamos que era a vesícula... E o estado dele...é muito grave doutor?
Não obteve resposta. Apenas um gesto evasivo, impessoal.
No dia 8 de Junho, ás onze horas da manhã, Alcides foi operado. A operação correu bem, linear, como disse o médico.
Alcides permaneceu nos cuidados intensivos durante dois dias. Logo depois foi transferido para o quarto, onde recebeu os filhos. Sentia-se fraco mas esperançoso. Ali, naquele hospital privado, caríssimo, rodeado pela família, o rosto magro e pálido de Alcides, iluminou-se por momentos no esboço de um sorriso.
Três dias depois deram-lhe alta. No relatório médico havia a indicação de metásteses no fígado.
De regresso a casa, impando de dores, mergulhado numa terrível angústia, Alcides arranjara forças para perguntar á mulher:
- Afinal o que é que eu tenho?!...
Felismina, de coração destroçado, não arranjara coragem para lhe dizer. Estava exausta. Desde que chegara a casa, correra atrás de médicos e enfermeiras, na esperança de algum apoio ao marido moribundo. Tudo o que lhe diziam era que não havia mais nada que pudessem fazer por ele...
Mas havia. Havia o acompanhamento necessário do Instituto de Oncologia, a consulta da dor, a ajuda que devia ser prestada ao doente em estado terminal e respectiva família que nunca chegou...
Felismina não se conformava que não se importassem com o seu homem. Comentava alto para quem a quisesse ouvir:
- Se abandonamos os nossos doentes no hospital, dando moradas e telefones falsos, somos irresponsáveis e criminosos, mas se nos dispomos a cuidar deles em casa, somos ignorados pelos médicos. Então em que é que ficamos?!
Uma tarde, um Alcides já muito debilitado mas ainda lúcido, murmurara ao ouvido da mulher: vou morrer...não vou?
Alcides faleceu na madrugada do dia 22 de Julho. Não fora a tempo de comparecer á consulta no hospital, marcada para dali a dois dias...