Alcides
Dez
minutos. Falaram dele durante dez minutos. Depois a sua lembrança foi
caindo no esquecimento. Poucos dos frequentadores do café onde fora
afixada a notícia do seu falecimento se dirigiram á igreja onde
familiares e amigos se solidarizavam com a esposa e filhos do defunto.
Meses
antes, ainda Alcides era vivo, tinham-no visto no café onde costumava
passar as tardes entretendo-se com umas partidinhas de "snooker".
- Ei homem você está amarelo, o que é que tem?!
Alcides
nunca mais dera as caras por ali. Mais do que os comentários sobre a
sua aparência, incomodava-o o facto de não saber o que tinha.
Emagrecera.
Estava anémico. Tinha corrido vários especialistas, pagara fortunas em
consultas. Para seu desespero os médicos mandavam-no fazer exames e mais
exames.
-
Que diabo! - lamentava-se à mulher exasperado - Esses cabrões só me
mandam fazer testes, então não descobrem o que se passa comigo?
A mulher não sabia o que dizer.
- Ó filho tens de ter calma, estas coisas não se resolvem do dia para a noite.
- O que eu tenho é muito grave e tu nem te dás conta, mulher...
No casamento da neta, Alcides tivera uma crise. Tremendo de frio não conseguira engolir o almoço.
- Vamos para casa, não me sinto bem...
A partir desse dia não voltou a ser o mesmo. Feitos mais alguns exames entrou em lista de espera para ser operado.
-
Quero ser operado na capital, não quero nada com esses médicos de cá -
proclamara Alcides, sempre desconfiado e descrente da eficácia da
medicina.
Na capital as suas expectativas foram cruelmente goradas.
- O senhor não pode ser operado, tem anemia...
Mais testes, mais exames. Finalmente regressaram a casa.
Passado alguns dias o médico comunicara por telefone:
- Têm de cá voltar para um último exame.
Abalaram de novo para a capital.
- O seu marido tem de ser operado de urgência minha senhora - disseram a Felismina - Tem um tumor no cólon...
Felismina não consegui pronunciar palavra. Aquilo soava-lhe mal. Atordoada balbuciou:
- Mas pensávamos que era a vesícula... E o estado dele...é muito grave doutor?
Não obteve resposta. Apenas um gesto evasivo, impessoal.
No dia 8 de Junho, ás onze horas da manhã, Alcides foi operado. A operação correu bem, linear, como disse o médico.
Alcides
permaneceu nos cuidados intensivos durante dois dias. Logo depois foi
transferido para o quarto, onde recebeu os filhos. Sentia-se fraco mas
esperançoso. Ali, naquele hospital privado, caríssimo, rodeado pela
família, o rosto magro e pálido de Alcides, iluminou-se por momentos no
esboço de um sorriso.
Três dias depois deram-lhe alta. No relatório médico havia a indicação de metásteses no fígado.
De regresso a casa, impando de dores, mergulhado numa terrível angústia, Alcides arranjara forças para perguntar á mulher:
- Afinal o que é que eu tenho?!...
Felismina,
de coração destroçado, não arranjara coragem para lhe dizer. Estava
exausta. Desde que chegara a casa, correra atrás de médicos e
enfermeiras, na esperança de algum apoio ao marido moribundo. Tudo o que
lhe diziam era que não havia mais nada que pudessem fazer por ele...
Mas
havia. Havia o acompanhamento necessário do Instituto de Oncologia, a
consulta da dor, a ajuda que devia ser prestada ao doente em estado
terminal e respectiva família que nunca chegou...
Felismina não se conformava que não se importassem com o seu homem. Comentava alto para quem a quisesse ouvir:
-
Se abandonamos os nossos doentes no hospital, dando moradas e telefones
falsos, somos irresponsáveis e criminosos, mas se nos dispomos a cuidar
deles em casa, somos ignorados pelos médicos. Então em que é que
ficamos?!
Uma tarde, um Alcides já muito debilitado mas ainda lúcido, murmurara ao ouvido da mulher: vou morrer...não vou?
Alcides
faleceu na madrugada do dia 22 de Julho. Não fora a tempo de comparecer
á consulta no hospital, marcada para dali a dois dias...
quinta-feira, 18 de agosto de 2016
segunda-feira, 3 de junho de 2013
Moamba
Às vezes fazia-se serão em casa de Vitor. Os amigos mais chegados reuniam-se para uma jogatina de cartas. Como de costume discutiam-se os destinos do país e outros assuntos. Lá estavam Serafim Mapunga membro da Associação Africana organização que derivara do Grémio Africano fundado em 1918, Luís Rodrigues e dois intelectuais, Marco Toqueleque e Lourenço Tembe.
Este último, um Tsua nascido em Mucoque, povoação a norte de Vilanculos, exercia funções no “O Emancipador” pasquim que surgira em 1925, ano que registara a prisão de 300 trabalhadores na sequência de uma greve geral em Maputo da qual só os velhos tinham lembranças.
Este último, um Tsua nascido em Mucoque, povoação a norte de Vilanculos, exercia funções no “O Emancipador” pasquim que surgira em 1925, ano que registara a prisão de 300 trabalhadores na sequência de uma greve geral em Maputo da qual só os velhos tinham lembranças.
Uma forte veia de radicalismo imperava nos círculos mestiços da capital maioritariamente constituídos por intelectuais, que pretendiam, ao invés de exigir o seu fim, reformular o sistema de modo que o estado colonial fizesse jus aos ideais proclamados de assimilação, civilização e progresso. O consenso de que o novo estado colonial não mais fizera do que marginalizar a população africana era geral.
Acendendo um cigarro, Lourenço Tembe destacou a falta de oportunidades de educação e a questão da mão-de-obra forçada, assunto que inflamava fortemente o debate sobre a política portuguesa, bem como a compreensão do mundo lá fora.
Acendendo um cigarro, Lourenço Tembe destacou a falta de oportunidades de educação e a questão da mão-de-obra forçada, assunto que inflamava fortemente o debate sobre a política portuguesa, bem como a compreensão do mundo lá fora.
- Vive-se num estado polícia encabeçado por Salazar! As suas políticas não são mais que uma fachada para as grandes corporações económicas onde a liberdade nos foi completamente negada - afirmava - O povo foi reduzido à pobreza, à escravidão e a censura é usada para abafar a toda e qualquer oposição política!
Victor ligou o rádio, oferta de um amigo, procurando uma estação próxima. Acordes nostálgicos seguidos pela voz do fadista encheram a sala. Perguntou se alguém o acompanhava numa bebida.
Marco Toqueleque comentou a aparente tomada de consciência de abusos do regime anterior como o xibalo, a mão-de-obra braçal que ainda permanecia. A expressão, usada em sentido pejorativo, era sinónimo de escravo e derivava de ku-bala (escrever) uma vez que os trabalhadores dependiam apenas da simples anotação do capataz para serem aceites. Sob o eufemismo de “contratados”, a maioria dos moçambicanos era forçada a trabalhar em obras públicas conquanto isso beneficiasse a comunidade.
- É apenas um disfarce para perpetuar a escravatura! - protestava vivamente.
Saboreando um licor, Luís Rodrigues acrescentou que a nova legislação pouco ou nada tinha servido e que a famosa “Carta Orgânica” que pretensamente procurara garantir a autonomia financeira e a descentralização administrativa em Moçambique, era em si própria uma contradição pois só a Assembleia Nacional detinha o poder.
Perante um país fragmentado não só na administração como também no desenvolvimento económico e infra-estruturas, Victor questionava-se "não seria necessário mais do que uma carta para mudar a situação de desintegração iminente"?
- O mais extraordinário, tendo em conta a expansão da economia e da administração colonial, é que ainda existam tão poucos africanos especializados nos sectores modernos deste país - constatava Marco, prosseguindo - Os portugueses ocupam a maioria dos cargos mais baixos na estrutura colonial como fiéis de armazéns, escriturários e mecânicos, limitando não só as oportunidades dos africanos como também a classe mestiça de entrar no sistema.
Victor estava convicto que a culpa era da administração, que dificultava o acesso dos africanos ao estatuto de “não-indígena”, sendo para isso necessário demonstrar um certo nível de educação.
- Lamentavelmente, muito poucos adquirem esse estatuto - acrescentava, em resposta às declarações de Marco. - Só alguns que, por algum motivo são necessários.
Serafim Mapunga afirmava que a raiz do problema residia no facto da educação chegar apenas a uma parte muito reduzida da população.
- Os regulamentos de 1929 dividiram o ensino primário em “elementar”, destinado aos “não-indígenas” e “rudimentar”, destinados aos “indígenas” - dizia - Teoricamente estes últimos não permitem o acesso à formação técnica.
Na rua elevavam-se murmúrios e sons abafados. Victor espreitou entre as persianas. Alguns foliões davam vazão a sua alegria. Logo de seguida a polícia actuou, dispersando os noctívagos. Qualquer manifestação pacífica, mesmo autorizada, era considerada rebelião pela polícia do regime.
domingo, 7 de novembro de 2010
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