Às vezes fazia-se serão em casa de Vitor. Os amigos mais chegados reuniam-se para uma jogatina de cartas. Como de costume discutiam-se os destinos do país e outros assuntos. Lá estavam Serafim Mapunga membro da Associação Africana organização que derivara do Grémio Africano fundado em 1918, Luís Rodrigues e dois intelectuais, Marco Toqueleque e Lourenço Tembe.
Este último, um Tsua nascido em Mucoque, povoação a norte de Vilanculos, exercia funções no “O Emancipador” pasquim que surgira em 1925, ano que registara a prisão de 300 trabalhadores na sequência de uma greve geral em Maputo da qual só os velhos tinham lembranças.
Este último, um Tsua nascido em Mucoque, povoação a norte de Vilanculos, exercia funções no “O Emancipador” pasquim que surgira em 1925, ano que registara a prisão de 300 trabalhadores na sequência de uma greve geral em Maputo da qual só os velhos tinham lembranças.
Uma forte veia de radicalismo imperava nos círculos mestiços da capital maioritariamente constituídos por intelectuais, que pretendiam, ao invés de exigir o seu fim, reformular o sistema de modo que o estado colonial fizesse jus aos ideais proclamados de assimilação, civilização e progresso. O consenso de que o novo estado colonial não mais fizera do que marginalizar a população africana era geral.
Acendendo um cigarro, Lourenço Tembe destacou a falta de oportunidades de educação e a questão da mão-de-obra forçada, assunto que inflamava fortemente o debate sobre a política portuguesa, bem como a compreensão do mundo lá fora.
Acendendo um cigarro, Lourenço Tembe destacou a falta de oportunidades de educação e a questão da mão-de-obra forçada, assunto que inflamava fortemente o debate sobre a política portuguesa, bem como a compreensão do mundo lá fora.
- Vive-se num estado polícia encabeçado por Salazar! As suas políticas não são mais que uma fachada para as grandes corporações económicas onde a liberdade nos foi completamente negada - afirmava - O povo foi reduzido à pobreza, à escravidão e a censura é usada para abafar a toda e qualquer oposição política!
Victor ligou o rádio, oferta de um amigo, procurando uma estação próxima. Acordes nostálgicos seguidos pela voz do fadista encheram a sala. Perguntou se alguém o acompanhava numa bebida.
Marco Toqueleque comentou a aparente tomada de consciência de abusos do regime anterior como o xibalo, a mão-de-obra braçal que ainda permanecia. A expressão, usada em sentido pejorativo, era sinónimo de escravo e derivava de ku-bala (escrever) uma vez que os trabalhadores dependiam apenas da simples anotação do capataz para serem aceites. Sob o eufemismo de “contratados”, a maioria dos moçambicanos era forçada a trabalhar em obras públicas conquanto isso beneficiasse a comunidade.
- É apenas um disfarce para perpetuar a escravatura! - protestava vivamente.
Saboreando um licor, Luís Rodrigues acrescentou que a nova legislação pouco ou nada tinha servido e que a famosa “Carta Orgânica” que pretensamente procurara garantir a autonomia financeira e a descentralização administrativa em Moçambique, era em si própria uma contradição pois só a Assembleia Nacional detinha o poder.
Perante um país fragmentado não só na administração como também no desenvolvimento económico e infra-estruturas, Victor questionava-se "não seria necessário mais do que uma carta para mudar a situação de desintegração iminente"?
- O mais extraordinário, tendo em conta a expansão da economia e da administração colonial, é que ainda existam tão poucos africanos especializados nos sectores modernos deste país - constatava Marco, prosseguindo - Os portugueses ocupam a maioria dos cargos mais baixos na estrutura colonial como fiéis de armazéns, escriturários e mecânicos, limitando não só as oportunidades dos africanos como também a classe mestiça de entrar no sistema.
Victor estava convicto que a culpa era da administração, que dificultava o acesso dos africanos ao estatuto de “não-indígena”, sendo para isso necessário demonstrar um certo nível de educação.
- Lamentavelmente, muito poucos adquirem esse estatuto - acrescentava, em resposta às declarações de Marco. - Só alguns que, por algum motivo são necessários.
Serafim Mapunga afirmava que a raiz do problema residia no facto da educação chegar apenas a uma parte muito reduzida da população.
- Os regulamentos de 1929 dividiram o ensino primário em “elementar”, destinado aos “não-indígenas” e “rudimentar”, destinados aos “indígenas” - dizia - Teoricamente estes últimos não permitem o acesso à formação técnica.
Na rua elevavam-se murmúrios e sons abafados. Victor espreitou entre as persianas. Alguns foliões davam vazão a sua alegria. Logo de seguida a polícia actuou, dispersando os noctívagos. Qualquer manifestação pacífica, mesmo autorizada, era considerada rebelião pela polícia do regime.
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