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sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

O Escritor



Pejada de gente, a pequena livraria iluminou-se de forma surpreendente com a chegada do escritor, homem de estatura mediana, tez branca, barba e cabelos louros raiados por alguns fios de prata. Atrás das fundas lentes, extraordinários e penetrantes olhos azuis, um azul celestial. 


Vestindo um casaco cinza sobre uma camisa clara sem gravata, este homem sereno, de ar simples e sério, entrou na livraria seguido do seu editor, circulou pelo estabelecimento cumprimentando pessoas notáveis e outras mais comuns, consultando algumas obras expostas nas prateleiras antes de ocupar a cadeira ali disposta para a tão aguardada apresentação da sua última obra.


O burburinho foi diminuindo enquanto a pequena comitiva que o acompanhava e ele próprio se acomodaram a escassos centímetros do público. Era um momento de grande intimidade e tensão. Mal se respirava à espera das primeiras palavras que sairiam da boca do homenageado que esboçava agora um sorriso naturalmente sedutor, numa fileira de alvos dentes. Fitava cada um dos presentes e eu não fui excepção. Por breves instantes a sua atenção fixou-se em mim, cumprimentando-me como se me reconhecesse de alguma outra ocasião. Retribui o cumprimento e aguardei de câmara fotográfica em riste, pronta a documentar o memorável acontecimento. 


Após algumas palavras elogiosas do seu editor, o escritor discursou sobre o livro que acabara de escrever, acentuando a ideia que após o término do seu trabalho e para que pudesse se desligar da obra, os personagens tinham inexoravelmente que "morrer" .


Pasmei com tais palavras. O escritor declarava sem rodeios sempre que escrevia era tomado por alguma forma de espírito que posteriormente abandonava, desligando-se do que escrevera, da história e seus personagens. Usou literalmente a palavra matar. Tinha de os "matar" para continuar a existir, para continuar a escrever. Soava surpreendentemente frio e doce ao mesmo tempo. Seguiram-se perguntas da mais variada natureza sobre a obra em si, sobre o autor, às quais o escritor respondeu nunca perdendo o sorriso acolhedor.


Ao final houve sessão de autógrafos e todos tiveram a oportunidade de trocar cumprimentos e palavras com o autor daquele que parecia ser, mais um extraordinário livro de quem já houvera sido galardoado com inúmeros prémios literários.


Esperei pacientemente a minha vez, com o coração á boca, cerrando nos dedos aquela que seria a minha humilde homenagem ao escritor, a minha música, a prova irrefutável da minha condição de artista e ao mesmo tempo a minha imensurável admiração, o meu silencioso pedido de socorro, o surdo apelo a uma sensível alma de poeta.


Quando chegou a minha vez pediu-me que sentasse aguardando que me pronunciasse. Disse-lhe que era música, portanto, artista como ele. Que nasceramos na mesma terra. Considerava ousei acrescentar motivos demais para querer conhece-lo pessoalmente, além é claro de nutrir uma grande admiração por ele e pela sua escrita. Balbuciei algumas palavras sobre o facto de estar afastada do meu país natal, Moçambique, fazia mais de trinta anos e a esperança que albergava de lá voltar um dia.


Ouviu-me com atenção, sorriu e disse-me algo parecido com o "criarmos o nosso próprio paraíso no sítio onde vivemos...".

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